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Paula Oliveira

A vaca chegou


Já tinha desejado ter uma vaca na minha vida, como desejei tantos outros animais. Mas não uma vaca qualquer, prefiro os autóctones por uma questão de identidade local. Eu queria uma vaca barrosã pois é em Barroso que vivo. Habito no lugar da Vila, da freguesia de Cabril. Vivo num vale cercado pelas conhecidas montanhas do Gerês e da Cabreira. A norte, como que a proteger a aldeia, está uma imponente montanha onde ao meio dia bate o sol e, por isso, lhe chamam Surreira do meio dia. Esta montanha foi em tempos habitada pela Águia Real que aqui vinha nidificar. Mas esta conversa é sobre a vaca e o que senti quando a vaca chegou. Dizia eu que queria uma vaca barrosã, aquela de cornos harmoniosos em lira, de pelo castanho, boca larga, lábios grossos e pestanas escuras. Têm um olhar profundo e dócil, parecem ponderadas e tranquilas. Soube de uma para vender. Fui vê-la e gostei do que vi. Com ela estava uma cria. Num sábado, pela manhã, a vaca e a cria chegaram à quinta da Albaleda. O transporte a pé foi tranquilo. À chegada, os homens, experientes cuidadores de vacas, ao contrário de mim, apaixonada, mas temerosa, prenderam a vaca na boxe pelos cornos. Segundo eles aí tinha de ficar amarrada para se habituar. Dei-lhes comida, à mãe e à filha. Compus uma cama de palha e fui para casa. Estava feliz, a linda vaca, de seu nome Cabana, e sua cria ficaram com os restantes animais da Quinta. Depois do almoço sentei-me a trabalhar no computador. O telefone tocou e do outro lado a má notícia. "A vaca partiu um corno e sangra muito". A vaca partira um corno e sangrava. O aspecto da coisa era feio. Pedi ajuda. Veterinário, outros cuidadores de vacas. Era preciso parar a hemorragia, desinfetar. Houve também opiniões que diziam que deveria serrar o corno e queimar a carne ou tentar pôr o corno no lugar. A minha coragem não deu para tanto. Decidi desinfetar, após a hemorragia atenuar. Assegurei que tinha água, dei-lhe ração e feno e voltei para casa, já noite. Preocupada, triste. Domingo voltei cedo à quinta, a vaca parecia tranquila, tinha comido, deixou que cuidasse dela. O meu medo desaparecera. Tirei-as da boxe e coloquei-as no pasto cercado. Estavam tranquilas. Fui cuidar dos outros animais. Mas, no pouco espaço de tempo decorrido, a vaca e sua cria desapareceram. Saltaram a vedação e fugiram. A minha tristeza voltou. A Pastora, cadela, seguiu um rasto, havia sangue nos arbustos, mas depressa deixámos de ter sinais. Ao subir o caminho as lágrimas caíam. Triste circunstância a minha, e delas, pobres animais assustados. Contactei os vizinhos e o ex dono. Ninguém as vira. Tranquilizaram-me, ela iria aparecer. Falámos do triste desgosto do corno partido. Uma infelicidade, sem dúvida, uma grande perda. Sem o corno, a vaca tinha uma grande deficiência, diziam eles. Uma coisa sem jeito nenhum, continuavam eles. Desde que a vaca partira o corno que os de casa andavam nervosos. Era como se o corno partido fosse um sinal de profunda desgraça, de alguma fatalidade. Uma premonição de algo pior que haveria de vir. Aquilo incomodava o ser e o sentir. Remexia o âmago, confundiu tudo. Coitada da vaca. Mas, tirando a dor do corno (e não de corno), a vaca estava bem. Comia, bebia, amamentava, manteve o olhar dócil, embora dorido.

Durante a tarde a vaca apareceu junto da casa do antigo dono. Ela e a filha. Voltei a ir buscá-las. O desgosto do corno partido, era cortá-lo, era pô-lo no sítio, era isto e aquilo. A minha preocupação continuava a ser apenas uma, que a vaca não ficasse doente. Do corno logo se veria. Parecia-me apenas um problema estético. No dia seguinte, o veterinário observou-a, medico-a por prevenção, disse-me quais os cuidados que deveria ter com ela e eu segui as suas orientações. Com o passar dos dias, finalmente o corno caiu. Melhor assim, o corno partido era um incómodo para o animal. Agora parece mais tranquila. Estreitámos a relação, ela confia em mim e nos meus cuidados. Eu troquei o receio que sentia pelo dever de a tratar. Conseguimos olhar nos olhos uma da outra, com sinceridade, alguma tristeza, mas muita esperança. Tornámo-nos próximas.

Com apenas um corno, a vaca é, portanto, unicórnio - aquela criatura mítica que simboliza gentileza, pureza, castidade e está ligada ao bem.

Oxalá que sim. A vaca chegou!

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